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CULTURA

Um Carnaval Para a Diversidade, um Carnaval para Mãe Carmem

Conheça parte do enredo de Carnaval 2024 e Homenagem da Acadêmicos Capiau, para Mãe Carmem de Xangô.

Publicado em 16/01/2024 às 10:42

(Foto: James Rios | GRECES Acadêmicos Capiau)

São dezenove horas e vinte e minutos do início de escrita deste artigo, após três vãs tentativas em dias anteriores. É um sábado nublado, de temperatura amena. Acabo de chegar do barracão onde estamos trabalhando na produção do desfile da Escola de Samba Acadêmicos Capiau. O enredo é sobre “diversidade” em múltiplas perspectivas: gênero, raça, etnia, religião, etarismo. Sobre minha mesa, uma foto de Mãe Carmem de Xangô. No verso, o registro: “Carnaval de 1983, Humildes da Favela”. Lá estava ela, Carmem Craveiro, uma jovem mulher, desfilando como baiana no Carnaval de Rua de Jacarezinho.

Completou setenta anos no último 25 de dezembro, em pleno Natal. Neste dia, estive com ela em sua casa. Passamos a tarde juntos. Conversamos, rezamos e cantamos. Com a saúde debilitada em face de uma doença agressiva, perguntou-me, em algum momento, com sua voz já ofegante: “Hein, ogã, será que o tri (campeonato) vem? Eu que não quero perder hein!”. Ela falava da Capiau. Estava muito animada para o desfile, apesar de seu quadro de saúde. Não demorou muito para me cobrar: “E minha roupa, tá pronta já? Não vou descer como marmota, hein”. Tranquilizei-a. Disse a ela, como nos anos anteriores, para não se preocupar, pois seu lugar no carro abre alas estava certo e que o figurino também.

Ela faleceu no último domingo, 7, em sua residência, na presença de sua família de santo. Recebi a notícia em Londrina durante as funções no terreiro Ilé Iwure, minha egbé. Foi difícil o trajeto até aqui para o cumprimento de seus ritos fúnebres. No velório, nenhuma autoridade política. Na mídia, nenhuma nota de pesar, nenhuma crônica. Nenhum decreto de luto por qualquer que fosse a instituição. Nenhum reconhecimento oficializado para uma mulher preta que há décadas manteve uma roça de candomblé, com atividades que extrapolaram os contornos de seus ritos religiosos. É dessa forma que partem muitos dos nossos: ao som do silêncio do racismo estrutural.

A trajetória de vida, bem como a passagem a ialorixá ao Orum ratificam a necessidade e urgência de um enredo como este proposto pela Acadêmicos Capiau. É preciso cantar a existência de todes aqueles que, mesmo à sombra do anonimato social, exercem com firmeza suas lideranças em prol da alteridade e do bem-estar do outro. Mãe Carmem carregava consigo muitas interseccionalidades: era mulher, negra, sacerdotisa do candomblé e idosa. Reconhecia-se facilmente no outro apesar das diferenças.Confessou-me, tempos atrás, a vergonha e tristeza que a acometeram quando uma pessoa, em uma cadeira de rodas, chegou para uma festa de Xangô e seu terreiro não tinha acessibilidade. Tratou logo de juntar suas economias para proporcionar este acesso.

Era uma mulher também preocupada com as questões sociais e culturais da cidade. Não havia festa de Cosme e Damião que não considerasse as crianças da comunidade da Pedreira – “extensão de seu terreiro”, dizia ela. Procurava se fazer presente nos principais eventos e discussões sobre políticas culturais da cidade.

Quando menos se esperava, chegava ela toda paramentada: bata africana, torso na cabeça, guias no pescoço e o sorriso no rosto pronta para dar e receber um abraço. Sua última aparição foi no Sarau da Negritude, na Praça São Benedito, nas atividades alusivas ao mês da Consciência Negra. Estava muito feliz e deixou plantada uma gameleira para as gerações futuras – seu último ato público.

O desfile da Acadêmicos Capiau será no dia 11 de fevereiro sem sua presença física. Mulher ancestral, Mãe Carmem terá sua cadeira no carro abre alas que coincidentemente homenageará Xangô, seu orixá. Celebraremos, neste dia, sua vida, sua obra, bem como a existência de todes aqueles que, de uma forma ou de outra, foram e continuam sendo invisibilizados por uma sociedade que insiste em não considerar as diferenças. Termino este texto fitando novamente a foto dessa mulher que em vida me inspirou e com sua morte material me ensinou que, no final das contas, no apagar das luzes, “tudo o que nóis tem, é nóis” – como reza o verso de Emicida. Por tudo isso, um carnaval para a diversidade é um carnaval para Mãe Carmem.

James Rios

Carnavalesco do GRECES Acadêmicos Capiau

Doutorando em Estudos Literários (UEL)

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